É o dia do meu casamento. Vejo-me no espelho de corpo inteiro. Está sujo. Deve ter sido a minha sobrinha a brincar. Gosta de dar beijinhos à Maria pequenina. Pareço um anjo, toda de branco, porém sinto que me tiraram as asas. Passo a mão pela renda cuidadosamente bordada. Arranha-me os dedos. São espinhos. Estou toda coberta de espinhos. A rosa foi cortada e deixada a murchar vestida de branco. Ponho o véu e a grinalda. Ninguém me ajuda. Não preciso de ajuda. Quando precisei arranjaram-me isto. Com o véu não me vêm a cara. Um fantasma sou o que sou. Um fantasma que vive com ele. Que foi com ele para Angola. Já o meu corpo, esse, ficou para outro. O véu faz-me cócegas no nariz e tem um leve cheiro a rosas. Estou pronta.
Não quero que ninguém me leve. Vou a pé para a igreja. É perto da casa dos meus pais. O sol aquece-me, mas não o suficiente. O meu coração continua frio. As minhas mãos macias e jovens pedem outras mãos que não aquelas combinadas com o meu pai. As pessoas olham espantadas para mim. Nunca devem ter visto uma noiva a ir a pé sozinha para a igreja. Não estou sozinha. Tenho um presente dentro de mim. O Joaquim pode ter ido para a guerra, homens sem liberdade a lutarem contra quem quer liberdade, mas deixou uma bagagem em terra. Carrego-a eu. A barriga ainda não se nota muito. Faço-lhe uma festa. Os espinhos do vestido não fazem nada contra este amor. “Se for menino quero-lhe chamar Jorge” foi o que ele disse dias antes de partir. Antes do meu pai mexer os cordelinhos e mandá-lo para a guerra. Não gostava dele. Dizia que ele conspirava contra a ditadura, que falava de uma possível revolução. E houve...mas só para mim e não para melhor.
Chego à igreja, arrepio-me. Está sempre aqui mais fresco. Olho em meu redor. Não está cá ninguém. Será que o meu pai me quis poupar de um casamento enorme e pomposo? Não, não me parece nada dele. Ah, ali está o senhor padre de frente para o altar.
- Senhor padre, onde está toda a gente?
Deus, não é o senhor padre, é outro senhor padre.
- Etelvina, o que está aqui a fazer?
Como é que ele se foi embora assim de um dia para o outro? E que raio de pergunta é aquela? E porque é que está pálido? Parece que viu um fantasma. Não que eu não pareça um... O senhor padre não me responde e eu também não. Pede licença e sai apressado. Procuro os meus pais, o meu futuro marido. Eu queria o meu amor do passado. Olho para a entrada e vejo-o. É Joaquim, mas meu Deus, parece que envelheceu uns 20 anos. Obra da senhora guerra. Anda, dá mais uns passos, solta-me destas amarras, desta armadilha, deste casamento arranjado.
- Voltaste… - digo-lhe eu.
Estendo a mão para o tocar. A manga do vestido tornou-se amarela, os meus dedos cheios de artroses e de mágoas.
- Mãe? - balbucia-me ele com lágrimas nos olhos.
Pouso a mão na barriga. Está vazia. Não foi o pai do meu filho que me veio buscar, livrar-me deste matrimónio. Foi o nosso filho. Ele vem sempre.