O amor pelos animais

Já não é a primeira vez que aquando da conversa sobre adotar um amiguinho patudo, vem à baila o comentário “Eu não tenho nada contra adoptar animais. Só acho que com tanta criança aí sem uma família, podiam adoptar uma.”. Nunca sei o que responder a isto. Adotar um animal não invalida adotar uma criança. Já para não falar de que o processo de adoção de um petiz não é só arranjar uma trela, ou uma caixa de areia. É moroso e burocrático.

Talvez do que estas pessoas se queixem é dos casais que adotam animais e não chegam a ter filhos. Opções de vida. Normalmente, não se sabe a vida do casal para se apontar o dedo, logo abstenho-me de tecer comentários (por ver a palavra “tecer” imaginei a caixa de comentários das redes sociais a chamar-se “Tear”).

Bom, no meu caso, a minha relação com animais é tirada do mesmo saco da do Ricardo Reis com a sua Lídia. Tenho medo de me apegar ao bichano que inevitavelmente irá morrer. Contento-me com os gatos da minha irmã, já sabendo que mesmo assim vou sofrer horrores quando eles forem para o céu dos ratinhos de pelúcia e das latinhas de comida húmida gourmet.

Por outro lado (pelo lado pejorativo da palavra “animal”), o amor pelos animais deve vir já depois de umas belas sessões no psicólogo. O que me leva a pensar no seguinte: que ato ou comportamento uma pessoa te poderia fazer ou ter, respetivamente, que te levasse a chamá-la de animal? Seria uma coisa leve do dia a dia, como ficar parado do lado esquerdo das escadas rolantes do metro? (aquela campanha do “Não seja urso” foi bem esgalhada) Ou uma coisa mais pesada, como não seguir o mandamento “Não cobiçarás a mulher do próximo”? (já agora, cobiçar o homem do(a) próximo(a) é na boa?)

“Animal” é um insulto pouco utilizado (acho eu), mas que quando é proferido percebe-se que é sentido, enche a boca. “És um animal!” é forte e verdadeiro. Aliás, se formos bem a ver as coisas, pergunto-me quando é que “animal” passou a ser um insulto, já que “És um animal!” é a constatação de um fato. Ofendia-me sim, se me dissessem “És um animal irracional!” e mesmo assim devíamos pensar duas vezes (ou as que forem necessárias) antes de nos sentirmos perplexos com tamanha afronta. É que para se fazer uma merda tal que nos chamem de “animal irracional”, tens de estar num estado, pelo menos, temporário (sim, porque não se sabe se para algumas pessoas esse estado é constante) de irracionalidade.

Já no Brasil, “ser um animal” é ser muito bom no que se faz. O que não invalida o sentido pejorativo PT-PT em que “ser animal” é se destacar na área da filha da putice.

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença

É o dia do meu casamento. Vejo-me no espelho de corpo inteiro. Está sujo. Deve ter sido a minha sobrinha a brincar. Gosta de dar beijinhos à Maria pequenina. Pareço um anjo, toda de branco, porém sinto que me tiraram as asas. Passo a mão pela renda cuidadosamente bordada. Arranha-me os dedos. São espinhos. Estou toda coberta de espinhos. A rosa foi cortada e deixada a murchar vestida de branco. Ponho o véu e a grinalda. Ninguém me ajuda. Não preciso de ajuda. Quando precisei arranjaram-me isto. Com o véu não me vêm a cara. Um fantasma sou o que sou. Um fantasma que vive com ele. Que foi com ele para Angola. Já o meu corpo, esse, ficou para outro. O véu faz-me cócegas no nariz e tem um leve cheiro a rosas. Estou pronta.

Não quero que ninguém me leve. Vou a pé para a igreja. É perto da casa dos meus pais. O sol aquece-me, mas não o suficiente. O meu coração continua frio. As minhas mãos macias e jovens pedem outras mãos que não aquelas combinadas com o meu pai. As pessoas olham espantadas para mim. Nunca devem ter visto uma noiva a ir a pé sozinha para a igreja. Não estou sozinha. Tenho um presente dentro de mim. O Joaquim pode ter ido para a guerra, homens sem liberdade a lutarem contra quem quer liberdade, mas deixou uma bagagem em terra. Carrego-a eu. A barriga ainda não se nota muito. Faço-lhe uma festa. Os espinhos do vestido não fazem nada contra este amor. “Se for menino quero-lhe chamar Jorge” foi o que ele disse dias antes de partir. Antes do meu pai mexer os cordelinhos e mandá-lo para a guerra. Não gostava dele. Dizia que ele conspirava contra a ditadura, que falava de uma possível revolução. E houve...mas só para mim e não para melhor.

Chego à igreja, arrepio-me. Está sempre aqui mais fresco. Olho em meu redor. Não está cá ninguém. Será que o meu pai me quis poupar de um casamento enorme e pomposo? Não, não me parece nada dele. Ah, ali está o senhor padre de frente para o altar.

- Senhor padre, onde está toda a gente?

Deus, não é o senhor padre, é outro senhor padre.

- Etelvina, o que está aqui a fazer?

Como é que ele se foi embora assim de um dia para o outro? E que raio de pergunta é aquela? E porque é que está pálido? Parece que viu um fantasma. Não que eu não pareça um... O senhor padre não me responde e eu também não. Pede licença e sai apressado. Procuro os meus pais, o meu futuro marido. Eu queria o meu amor do passado. Olho para a entrada e vejo-o. É Joaquim, mas meu Deus, parece que envelheceu uns 20 anos. Obra da senhora guerra. Anda, dá mais uns passos, solta-me destas amarras, desta armadilha, deste casamento arranjado.

- Voltaste… - digo-lhe eu.

Estendo a mão para o tocar. A manga do vestido tornou-se amarela, os meus dedos cheios de artroses e de mágoas.

- Mãe? - balbucia-me ele com lágrimas nos olhos.

Pouso a mão na barriga. Está vazia. Não foi o pai do meu filho que me veio buscar, livrar-me deste matrimónio. Foi o nosso filho. Ele vem sempre.