A sombra é de propósito. É suposto ser um chinelo xD
Título original: Die Verwandlung
1ª Publicação: 1915
1ª Publicação em PT: 1975
O meu humilde exemplar:
Tradutor: João Barrento
Editora: Ulisseia - Babel
Edição de 2011
Capa dura
105 páginas
Comprado na 89ª Feira do Livro de Lisboa (2019)
Curiosidades:
Comecei a leitura numa Conservatória do Registo Civil enquanto esperava para renovar o Cartão do Cidadão.
Já depois da ficha técnica do livro está uma frase de José de Almada-Negreiros: “Nós não somos do século d’inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.”
Sinopse numa frase:
Um homem, que sustenta a família (pais e irmã), transforma-se num “insecto monstruoso” da noite para o dia.
“Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso.”
Qual seria esse “insecto monstruoso”? Durante a maior parte do livro, Kafka não revela exatamente qual é o animal que causa tanta aversão. Fala em carapaça, patinhas, antenas e mandíbulas, mas não dá nome aos bois, ou neste caso, ao inseto. Tudo leva a crer que seja uma barata, porém descobri que era um escaravelho, segundo uma exclamação da empregada:
“A princípio até o chamava, com palavras que provavelmente achava simpáticas, como “Vem cá, meu escaravelho de uma figa!”, ou “Olhem-me só para este escaravelho de uma figa!” Gregor nem reagia a estes apelos, ficava imóvel no seu lugar como se ninguém tivesse aberto a porta.”
A metamorfose de Gregor Samsa até poderia não ter consequências graves se ele vivesse sozinho, entregue a si, e sem ninguém que dependesse dele. Por azar, ele não só vivia com a família, como esta dependia totalmente de si. Até a disposição do quarto de Gregor dá a entender que ele é o coração daquela casa. A assoalhada dá para diversas divisões da casa:
“Da sala da direita, a irmã sussurava, avisando-o “Gregor, está aqui o gerente.” (…) “Gregor” - agora era a voz do pai, da sala à esquerda.”
A maior parte das pessoas que dão com a cara nele sentem nojo e não acreditam que ele ainda seja ele. Sequer cogitam que Gregor consiga perceber o que lhe é dito. Porém, a irmã ainda o ajuda, pois o amor fraternal é mais forte. Mesmo assim ela não consegue olhar para o mano inseto e prefere quando este se esconde.
“Uma vez, teria passado um mês deste a metamorfose de Gregor e não havia já razão para a irmã se espantar muito com o aspecto dele, ela entrou um pouco mais cedo do que o habitual e encontrou Gregor imóvel e naquela posição vertical assustadora, debruçado da janela. (…) Mas ela não só não entrou, como recuou e fechou a porta. Um estranho até podia ter pensado que ele estava à espreita e a quisera morder.”
Ao longo da leitura o que me afligiu não foi tanto a metamorfose, mas sim o fato de ele se aperceber de tudo, de entender tudo o que é dito, mesmo a família pensando o contrário. Para eles, Gregor é só um inseto que não fala, não percebe nada à sua volta. Só rasteja, come lixo e vive para ser repugnante.
“”Meus pais”, disse a irmã (…) “Se não quiserem ver as coisas como eu, o problema é vosso, mas eu nego-me a pronunciar o nome do meu irmão diante deste monstro, e digo apenas que temos de encontrar uma maneira de nos livrarmos dele.”
Porém, a metamorfose para o mal inicia uma metamorfose para o bem na sua família. O pai que pensa que é quase inválido, volta a trabalhar. A irmã considerada um estorvo, cresce intelectualmente e passa a ser olhada com admiração pelos pais. E a mãe, frágil e doente, vê que ainda consegue ser útil e costurar para uma loja de moda.
A Metamorfose é uma metáfora, ou será até mesmo uma fábula? Gregor Samsa inseto pode ser uma pessoa com qualquer doença ou vícios que a torne dependente de terceiros e, principalmente, que seja visto como um estorvo, um estorvo que a, longo prazo, nem dá vontade de olhar para ele. A longo prazo, porque de início a família aguenta, os amigos aguentam...mas até que ponto é que podemos censurar a renúncia, o cansaço dos que estão à volta do “inseto”?
Talvez o “inseto” até possa ser tudo o que é “feio”, tudo o que não é “normal”, tudo o que não se consegue compreender e é preferível virar a cara para o lado, ou, pior ainda, magoar e fazer sentir a repugnância.
Por outro lado, para mim, A Metamorfose é um exercício de escrita. Um exercício em que se parte de um acontecimento/ato e se imaginam todas as consequências que podem advir daí. Aqui, temos Gregor Samsa que acorda transformado num inseto e ao longo de todo o livro testemunhamos como esse acontecimento afeta a vida do personagem e de toda a sua família. Saramago também era muito dado a este tipo de exercício, veja-se o Ensaio Sobre a Cegueira - e se toda a gente cegasse?, as Intermitências da Morte – e se a morte tirasse férias?, ou o Ensaio Sobre a Lucidez – e se a maioria da população votasse em branco?.
É o primeiro livro de Kafka que leio e pretendo ler mais. Inclusive, comprei há pouco tempo O Processo. Vamos ver se a leitura será tão fluída como A Metamorfose.